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Crônica de um peregrino // With a backpack, crossing Spain on foot

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DE MOCHILA, CRUZANDO A ESPANHA A PÉ .
Uma rota medieval de 800 quilômetros em que “chegar” é o menos importante.

Texto de © Guy Veloso.  Registrado na Biblioteca Nacional.

 

Originalmente publicado no Jornal Valor Econômico em 2003. 

 

“Caminhar faz muito bem à saúde, meu filho” – disse uma tia antes de eu embarcar à Espanha para “fazer umas trilhas”, como havia espalhado na família. Ela só não sabia que seriam 800 quilômetros… Havia escondido de todos esta minha pretensão. Era o ano de 1993. Tinha 23 anos e – como diziam – “uma vida inteira pela frente”. Recém formado em Direito, antes de exercer a profissão queria em um mês imitar os passos dos peregrinos medievais, cruzando a pé e de mochila todo o norte da Espanha. De ponta a ponta. Seria um tempo para pensar naquela “vida inteira” que estava por vir, fora dos bancos acadêmicos. Era o que hoje está tão em moda entre empresários, socialites, artistas e outros maios ou menos endinheirados: o ano (ou mês) sabático.

Caminho de Santiago Saint James road Camino de Santiago

Foto: Guy Veloso. Catedral de Astorga. Slide.

Comecei em passos trôpegos em uma manhã chuvosa desde uma cidadezinha francesa, Saint-Jean-Pied-de-Port, bem perto da fronteira com a Espanha. Para trás ficaram sete anos, mais lembro agora perfeitamente do cheiro de mato molhado pairando no ar junto com a neblina, ao subir os Montes Pirineus por trilhas de pastores em meio a pastagens e bosques desertos. Recordo até os pensamentos, a alegria de estar iniciando uma grande aventura, como também o medo, pavor de não conseguir. Sim, pois o assombro da derrota era aquela altura mais voraz do que temores naturais de sobrevivência naquele lugar nada familiar. E eu era bastante radical para a idade: deveria completar o trajeto, sempre caminhando, a partir dos Pirineus franceses, sem nunca ceder a tentação de pegar uma carona. Na verdade, esperava que ao final, ao chegar na cidade de Santiago de Compostela depois de um pouco mais de um mês, resolvesse algumas questões interiores e – principalmente – conhecesse mais de mim mesmo. Chegar, naquela época, era questão de honra, quase uma obsessão. Mas também, um prêmio, troféu.

Em alguns dias adaptei-me ao cotidiano: acordar cedo, caminhar o dia inteiro (média de 25 quilômetros), passar por dezenas de povoados perdidos no tempo (com suas heranças magníficas, catedrais e castelos), e pela noite empanturrar-me de vinho (descobrindo as diversas nuances de acordo com os micro-climas do norte espanhol à medida que avançava). O sol raiva pungente sobre meu rosto, por vezes a chuva. A mesma que beijava tanto minha face quanto os campos verdes ao meu redor. Cada dia diferente do outro. Cada dia de cada vez.

Progredia lentamente, geralmente sozinho, pelas veredas rurais, seguindo indicações em forma de setas pintadas sempre em amarelo nas árvores, pedras, troncos etc. As “flechas amarelas” eram minhas estrelas-guias. Por mais que eu tivesse em mãos alguns mapas, era pelas marcações amarelas que eu me orientava. Levava na mochila sempre água e algumas frutas, cujas sementes eu jogava na beira da estrada. Imaginava que ali poderia crescer uma macieira, laranjeira ou videira, sei lá. Divagava que no futuro viria a alimentar um outro peregrino de passo por esta mesma estrada.
Dormia em albergues especiais espalhados por toda a Rota, mantidos por associações de peregrinos ou pelas prefeituras locais. Outras vezes, ficava hospedado em monastérios e colégios católicos. Locais simples, rústicos até, mas com tudo que alguém com fome e extremamente cansado pode necessitar para transformar aquilo no Palácio do Marajá de Jodhpour: uma cama limpa, cozinha, banheiro. E só.

Ah, tinha também os amigos. Pessoas de todas as partes do mundo que se espremiam entre beliches e mochilas coloridas espalhadas pelo chão. Gente que eu nunca tinha visto na vida, mas que logo estavam dividindo comigo um pouco de sua comida, trocando informação sobre as trilhas ou embebedando-se nas tabernas. Todos dormiam juntos em um grande quarto, e na maioria das vezes até o banheiro era dividido por homens e mulheres. Ali não havia divisão de classes. Estavam todos com os mesmo objetivos, deitando em camas iguais, passando pelas mesmas dores (bolhas, tendinites, cansaço) e ansiedades. Compartilhávamos todos os mais secretos sentimentos e segredos. Éramos uma grande família peregrina. Aquela terra, aquele caminho nos unia. Dia após dia, milha depois de milha. Montanhas, florestas, campos secos e cidades. O cansaço, por vezes a solidão. Não raro, achava estar louco por passar por tudo aquilo.

No Caminho de Santiago, deparamos com nossos horizontes e com nossas fronteiras também. Descobrimos pequenas coisas que não notamos em nossa vida diária. Vemos o valor de um copo d’água por termos passado sede, ou de um pedaço de pão por termos passado fome. Um sorriso ou palavra de incentivo. No Caminho, damos de cara com nossos medos e vaidades. Nos perdemos; nos encontramos. E avançamos sempre a oeste. Rumo a Compostela.

Adentrei à cidade de Santiago em uma terça, às 11:15 do dia 13 de julho de 1993. Lembro-me como hoje de meu júbilo ao ver pela primeira vez as torres de pedra da imensa Catedral – onde o trajeto oficialmente termina. Durante meus últimos passos no Caminho de Santiago, mesmo que extremamente feliz de concretizar um sonho, vi que o melhor já tinha passado. Que “chegar” era apenas um detalhe. Que o caminho que ficou para trás – junto com suas experiências –, isto sim, era a verdadeiro troféu, aquele que eu guardarei para o resto da vida.

De lá para cá, mudei bastante. Não exerci a advocacia, rompi com um amor e com vários conceitos e preconceitos. Criei sonhos e enterrei mágoas. E muito disto foi em conseqüência desta minha viagem. De lá até os dias de hoje, tentei passar esta minha experiência adiante. Assim como eu desenhei estas letras. Assim como as sementes que joguei à estrada. Se elas vicejarão, crescerão e um dia alimentarão outro peregrino que – como eu – cruzou aqueles campos mágicos, eu não sei. Terá valido a pena de qualquer forma. E muito.

Guy Veloso é fotógrafo e escritor. Autor de Via Láctea – Pelos Caminho de Santiago de Compostela.

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With a backpack, crossing Spain on foot.

A 497 miles medieval route, where arriving is the less important.

 

Guy Veloso

 

“Walking is good to your health, son” – said an aunt of mine before I had gone “hiking” in Spain, as she told to all my relatives, but she only didn’t know that it would be 497 mi.

I have hidden this intention from everybody. It was in the year of 1993. I was 23 and – like everyone says – I had a long life to live. Just graduated in Law College, before being a lawyer effectively, I wanted to redo the medieval peregrine’s steps, crossing the North of Spain in a month. It must be a time to think about “all the life to come”, far away from College stuffs. It was what we call today: the sabbatical year (or month), well-known by businessmen, socialites, artists and others more or less wealthy ones.

I started with feeble steps in a rainy morning from a little French town called Saint-Jean-Pied-de-Port, right next to the borderline to Spain. Seven years were left behind. But I perfectly remember the smell of the wet plants blended to the fog, when I was going up the Pyrenees Mountains by shepherd’s trails among fields and woodlands. I remember even the thoughts and the happiness of starting a great adventure, as well as the fear of failure. Yes, the fear of failure was huger than the natural surviving worries in that not familiar place.

And I was too radical to that age: I must finish the route always walking from the French Pyrenees without giving up for a ride. Actually, I hope that, in the end, arriving in the city of Santiago de Compostela, after about one month, I could solve some inner troubles and maybe to know a little bit more about me. Arriving was an honor matter, almost an obsession. But it also was a prize, a trophy.

In a few days, I was conformed to the everyday activities: wake up early, walk all day long (almost 25 km per day), move through villages lost in time (with their wonderful legacy, castles and cathedrals), and drown myself in wine at night, discovering plenty of nuances according to the North Spain weather. The sun shone brightly in my face. Sometimes, it was the rain, the same rain which kissed my face as the green fields did. Each day different from another. Each day by its time.

I went ahead lengthily, alone most of the time following arrows painted yellow on trees, stones, etc. The yellow arrows were my lodestar. Although I had some maps in my hands, I was guided by those yellow signs. I always carried water and some fruits inside my backpack. I threw all the fruits seeds on the ground, wondering that any tree could be born there. I wondered if that tree, those fruits could feed any other walker passing though that same way.

I slept in special hostels supported by associations or by the local government. I sometimes stayed in monasteries or catholic schools. They were simple and rustic, but there were everything that a hungry and tired man needed. And it became a palace for me: clean bed, a kitchen and a bathroom. That’s all.

There were also the friends. People from everywhere who squeeze themselves among the beds and bags on the floor. People I had never seen before, but soon we were sharing food, changing information about trails or getting drunk in pubs. We all slept together in a large room. And most of times, even the bathroom was used by men and women.

There weren’t social ranks. Everybody had the same goal, lying down on equal beds, going through the same pain and anxiety. We were a big peregrine family. That land, that way put us together.

Day after day, mile after mile. Mountains, forests, thirsty fields and cities. Sometimes there were weariness, sometimes loneliness. I doubted to be crazy.

On Santiago’s way, we faced our limits. We’ve realized such as small things we’d never realize in our lives. We could measure how valuable is a glass of water because we had thirst, or a slice of bread because we had hunger. On that way, we found our fears and vanities. We lost and then we found ourselves. Go due Compostela.

I entered the city of Santiago on a Thursday, July 13th, 1993 at 11:15. I remember my gleefulness in seeing the stone towers of the great Cathedral for the first time, where the route finally ends. During my last steps, I was so happy in seeing my dream becoming true. I saw that the best has just passed. Arriving was only a small detail. All the way I left behind, all my experiences – those are my real prize that I’ll keep for the rest of my life.

Since then, I’ve changed my mind lots of times. I didn’t become a lawyer. I’ve broken up with a love and several ideas. I have built dreams and killed the sorrows off. And it was because of my trip. I’ve been trying to give this experience out. As I’ve drawn these letters. As the seeds I threw on the ground. I don’t know if they are going to flourish and feed another peregrine like me. But it’s worth its price anyway.

 

(c)  Guy Veloso, writer and photographer .

First published in “Valor Econômico” Newspaper in 2003. More articles and information about the “way to Santiago de Compostela” on the website: santiago.com.br.

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